Apanhadores de Flores

Os apanhadores de flores sempre-vivas, como se autodenominam, habitam a porção meridional da  Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, localizadas em pelo menos 15 municípios nas proximidades do  município de Diamantina. As comunidades rurais apanhadoras de flores vivem em meio a áreas de  campos rupestres do Cerrado. A coleta das flores sempre-vivas constitui-se como uma tradição e fonte  de renda fundamental para a reprodução sociocultural das famílias. As territorialidades dessas  comunidades combinam diversos agroambientes contidos sobre a serra (campos a 1400 metros de  altitude destinados à coleta e solta de gado rústico) e no “pé-da-serra” (a 600 metros de altitude onde, geralmente, praticam agricultura tradicional com roças, quintais, criação de animais de pequeno  porte).

Os cultivos são destinados, sobremaneira, para o consumo familiar contendo ampla gama de  variedades crioulas/locais de feijão, arroz, mandioca, milho, cana-de açúcar e hortaliças nativas. O  sistema de cultivo pode valer-se do uso de rotação com pousio para a reposição natural da fertilidade  dos solos, contando com roças de toco com alta diversidade de espécies em meio ao Cerrado. 

As flores sempre-vivas são endêmicas e ocorrem nos campos rupestres do Cerrado e dizem respeito  ao termo popularizado para essas inflorescências que, depois de colhidas e secas, conservam sua  forma e coloração. Além das flores, são coletadas folhas, frutos secos, sementes, etc., vindas de  distintos locais/ambientes de coleta (campos, serras, serrinhas, boqueirões, etc.) a depender da época  do ano e da demanda. São produtos destinados ao mercado de plantas ornamentais secas. Até o  momento, já foram identificadas 350 espécies nativas manejadas voltadas ao mercado de plantas  ornamentais secas, das quais 90 espécies referem-se às chamadas flores e botões. Além das flores,  também manejam ampla gama de plantas nativas para uso medicinal e alimentar, além de madeiras,  fibras e óleos. Ou seja, uma mesma família faz uso/maneja centenas de espécies.

Geralmente, as moradias das famílias encontram-se agrupadas em comunidades próximas aos campos de coleta, comumente reconhecidos como áreas de uso comum das famílias em que o parentesco e  ancestralidade permeiam as relações de acesso e uso dos mesmos. É comum as famílias  permanecerem por longas jornadas sobre os campos na época da seca para a coleta de flores, manejo  do gado rústico e de animais de carga. Para tal, alojam-se nas “lapas” (grutas nas formações rochosas)  ou em “ranchos”. Comumente encontra-se o gado curraleiro – reconhecido como a primeira raça  bovina trazida ao Brasil pelos colonizadores.

Já na época das chuvas, as famílias praticam agricultura  tradicional próximo às casas para consumo familiar, sendo a abundância de água ressaltada pelos  moradores como importante riqueza e patrimônio herdado. Nos quintais, ao redor das moradias há  gêneros alimentícios variados e criação de pequenos animais que se constituem em uma rica cultura  alimentar. Normalmente, o trabalho é realizado pela família, sendo constante a realização das  atividades de forma artesanal. Ocorrem, também, festas religiosas próprias de cada localidade. Nesse  movimento, regido pelas estações do ano, tem-se a transumância.

Foram desenvolvidas estratégias de vida e saberes complexos, permeados por significações e  compreensões contextualizadas pelos lugares onde se encontram – saberes tradicionais transmitidos e reinventados ao longo de muitas gerações que vêm garantindo a vida das famílias ao longo do tempo com representações e práticas sociais de interação com a natureza, a qual é vista como criadora da vida e como um todo do qual fazem parte. Os usos desses agroambientes são organizados por códigos  próprios, desenvolvidos e reelaborados ao longo dos séculos de história, uso e interação com os  mesmos. A pluralidade de atividades confere maior flexibilidade perante os contextos internos e  externos à família.

Essas comunidades detêm um modo de vida singular em interação profunda com espécies nativas e  cultivadas conformando um sistema agrícola singular que conjugam diferentes ambientes, altitudes e saberes tradicionais associados a um rico patrimônio agrícola e cultural em uma paisagem manejada  de intensa beleza. Porém, vêm sofrendo ameaças territoriais pela implantação de monocultivos de  eucalipto, fazendas de pecuária, mineração e parques naturais sobrepostos às suas terras de uso  comum, o que gera a criminalização de seu modo de vida.

Em resposta a esses ataques, as comunidades apanhadoras de flores organizaram-se regionalmente na Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas – CODECEX e lutam pelo seu reconhecimento social, tendo se tornado o primeiro Sistema Importante do Patrimônio Agrícola Mundial reconhecido em 2020 pela FAO/ONU. Essas  comunidades mostram-se sempre-vivas na luta pelos seus direitos territoriais!

 

Por Fernanda Monteiro

Compartilhe nas suas redes!!

Fique por dentro das últimas notícias do Museu Vivo!

Cadastre-se e faça parte da nossa lista. Por lá, você irá receber em primeira mão as notícias do Museu Vivo, dos territórios e dos povos tradicionais de Minas Gerais.