Veredeiros

Quando você vai chegando perto da vereda, você tá no Cerrado, aí você enxerga de longe os buritis. Aí, naqueles buritis, o mais importante é que há a existência da água, das nascentes. Porque lá, onde você viu os buritis, tem água. E quando você vê água, existe as comunidades, os veredeiros.

As comunidades veredeiras do norte de Minas Gerais estão localizadas nas regiões dos Planaltos Sanfranciscanos, concentradas, principalmente, nas extensas áreas de gerais da margem esquerda do rio São Francisco, entre as bacias dos rios Pandeiros, Pardo, Cochá e Gibão. Encontram-se em uma ampla faixa de transição entre os biomas do Cerrado, da Caatinga e porções de Mata Seca, o que confere a estas áreas alta variação de ambientes. Isso se manifesta na quantidade de espécies vegetais e animais, faixas de solos férteis e, há algumas décadas, alta disponibilidade de água, devido à complexa rede hídrica que entrecorta todo o território, tornando-se uma das principais áreas de recarga hídrica do Aquífero Bambuí.

As famílias veredeiras têm nas dinâmicas das águas o maior regulador de seu modo de vida. Elas lhes servem tanto para o consumo, como também para a contemplação e lazer familiar e comunitário, sendo parte dos laços sociais e culturais tradicionalmente tecidos. Não à toa, os veredeiros se reconhecem como guardiões das águas, uma vez que as veredas são primordiais para a manutenção das nascentes que garantem o renascimento e saúde ambiental das águas.

Ao longo de gerações, as comunidades veredeiras desenvolveram conhecimentos profundos sobre seu entorno, pautando sua existência cultural a partir dos ciclos ecológicos vividos anualmente. Esse conjunto de conhecimentos tem permitido que as famílias se relacionem com esses variados ambientes de forma interdependente, onde veredas, chapadas, tabuleiros e matas não só formam o lugar de morada ou de produção econômica, mas, por meio de sua sociobiodiversidade, também estruturam o mundo veredeiro.

Veredas Vivas

Apesar das veredas constituírem-se como ecossistemas centrais para manutenção da dinâmica hídrica local, as comunidades veredeiras não se limitam única e exclusivamente em relação a esse ambiente. O modo de vida veredeiro se baseia, principalmente, no uso combinado dos diferentes ecossistemas locais, como: lavouras de sequeiro nas áreas de mata, na exploração intensiva das áreas úmidas de veredas e no uso das imensas chapadas e das matas secas para criação de gado e agroextrativismo

Nas áreas de veredas, reconhecidas pela fertilidade do solo em decorrência do acúmulo de matéria orgânica, é utilizado o sistema de esgotamento. Trata-se da drenagem de pequenas áreas para abertura de roças familiares caracterizadas pela alta produtividade. Antigamente, nessas áreas, um dos principais cultivos era o de arroz crioulo. Mas, com as mudanças climáticas da região, muitas práticas foram modificadas. Hoje, um dos principais cultivos, é o do feijão crioulo. Além das roças, nas áreas de veredas, as famílias têm acesso ao extrativismo de toda a variedade de frutos, fibras e plantas curativas disponíveis nesse ambiente. A paisagem das veredas compreende, assim, tanto a vegetação para o alimento, para a cura, quanto os usos sociais e sentidos simbólicos das águas para estas comunidades.

Nas áreas de mata, também chamadas de terra de cultura, é onde concentram grande parte das roças familiares e das mangas, utilizadas para garantir a sobrevivência do gado nos momentos mais drásticos de seca. Grande parte das famílias mantêm pequenos roçados para o plantio.

Santino segura produção beneficiada de pequi em Água Doce, Bonito de Minas – MG Foto de Luciano Dayrell

As chapadas devem ser entendidas como um sistema interdependente das veredas, pois é por meio de seu solo que é possível a filtragem de toda água superficial para abastecimento dos lençóis freáticos. Tratam-se de áreas ricamente povoadas por espécies vegetais, como diversos tipos de gramas, fundamentais para alimentação do gado e de animais silvestres, além dos frutos do cerrado, parte importante para o extrativismo praticado pelas famílias veredeiras. Da ecologia das terras de chapada, destaca-se a importância do pequi como alimento das famílias, onde se extrai a polpa, o óleo e o coco; da cata da favela (fava d’anta) que anualmente toneladas são vendidas para atravessadores sendo um importante complemento da renda familiar.

A produção agrícola, em sua maioria, é destinada basicamente para manutenção da alimentação familiar e das criações, em alguns casos com a comercialização local do excedente. Entre as principais culturas desenvolvidas pelas comunidades veredeiras destacam-se o milho, o feijão, a fava, o sorgo, uma variedade de capins nativos, além das manivas de mandioca. A seleção e estocagem das sementes é feita cuidadosamente selecionando os grãos de melhor qualidade, prezando por manejos sem qualquer tipo de defensivo agrícola. São cultivadas sementes e mudas crioulas, que apresentam características específicas adquiridas a partir de processos de melhoramento genético por meio das trocas e seleções feitas pelas próprias famílias.

O circuito de trocas de sementes é elemento importante para manutenção da variabilidade genética das sementes tradicionais e está vinculado a uma rede de sociabilidade e manutenção de vínculos solidários.

A criação de gado é marcadamente uma das mais representativas da relação familiar e das dinâmicas vinculadas ao ambiente. Historicamente, as imensas planícies da região sanfranciscana foram ocupadas e tornaram-se, pelas suas características ecológicas próprias, áreas naturais para a criação extensiva (super extensivas) de rebanhos. Desse modo, os rebanhos estão vinculados a uma espécie de relação patrimonial, onde as cabeças de gado fazem parte de uma segurança financeira, uma espécie de poupança. Todas as famílias desenvolvem a criação de gado, variando muito a quantidade de cabeças. Enquanto há famílias que possuem de três a 16 animais, outras extrapolam 160 indivíduos, variando de acordo com a disponibilidade de terras. Em um único núcleo familiar, há vários proprietários como o pai, a mãe, os filhos, cada um com seu número de cabeças, mas que fazem parte de um mesmo patrimônio doméstico. No entanto, ao tratar sobre a experiência veredeira com o gado é importante não reduzir essa relação à noção de subsistência, pois o manejo e comercialização desses animais se localizam em redes muito mais amplas e complexas do que somente o autossustento.

A solta do gado é quando os animais são soltos nos imensos chapadões durante o período das águas (outubro a março), sendo que na seca (entre março e setembro) os animais são recolhidos e confinados nas mangas (pastos plantados nas áreas de mata).

Dentre as principais atividades encontradas hoje entre as comunidades veredeiras destaca-se a apicultura, realizada a partir do manejo de abelhas africanizadas. A demanda surgiu da necessidade de criar mecanismos de geração de renda para aquelas famílias que estavam submetidas à rede de produção de carvão. Antes, não havia manejo de abelhas entre as comunidades, o mel utilizado era extraído somente para consumo familiar a partir da produção das abelhas nativas, como jataí (Tetragonisca angustula), borá (Tetragona clavipes), arapuá (Trigona spinipes), abelha boca de sapo (Partamona helleri), mandaçaia (Melipona quadrifasciata), uruçu (Melipona scutellaris), marmelada (Frieseomelitta varia) e tataíra (Oxytrigona tataira). Entretanto, esse extrativismo não se dava de forma sistematizada e não estava inserido a uma rede de comércio.

O apicultor Toni Cigano em Cabeceira de Mandins, Januária – MG Foto de Luciano Dayrell

Por estarem em ambiente de rica diversidade de floradas, com variações entre chapadas, matas e mata seca, há possibilidade de manter a produção de mel durante todo o ano e com alto rendimento. Todavia, o número de coletas realizado nas colmeias irá variar de acordo com a disponibilidade de chuvas e a quantidade e qualidade das floradas. Em muitos casos, um mesmo tipo de árvore pode florir diferentes vezes em um mesmo período e as características do mel serão definidas pelos tipos de floradas que as abelhas terão acesso em cada período do ano. As diferenças de floradas irão influenciar no sabor, textura, peso, coloração e nutrientes do mel.

A relação dos veredeiros com seu território atravessa diversas técnicas adaptativas e de manejo que ocorrem a partir da prática e da criatividade individual e coletiva que leva a transformação, não só do meio, mas também dos indivíduos e grupos sociais ali viventes.

Um exemplo desses são os usos das fibras vegetais que, assim como as diversas madeiras da região, referidas comumente como “pé de pau”, são fundamentais para construção de instrumentos de trabalho, moradia e alimentação animal. O buriti é a espécie mais emblemática do território veredeiro por sua ocorrência se dar exclusivamente nas próprias veredas. O uso e aproveitamento dos seus frutos e fibras são amplamente difundidos entre as famílias da região. É muito comum chegarmos às casas locais e encontrarmos bancos, camas, sofás, todos feitos a partir dos caules dos buritis (parte mais robusta das folhas). Por se tratar de uma fibra leve e resistente permite fácil manuseio e grande durabilidade.

Alguns dos usos mais comuns das palhas do buriti eram nas construções utilizadas nos variados ambientes do território. As palhas do buriti eram utilizadas principalmente para cobrir telhados das próprias casas de moradia, barracões utilizados para guardar ferramentas e estocar mantimentos, nos currais e nas casas de farinha. Ainda hoje é comum encontrarmos espaços de trabalho cobertos com as palhas do buriti. Quando as famílias migravam para as chapadas, nos períodos das águas, para se dedicarem às pequenas roças nas áreas de veredas, as palhoças eram construídas com madeiras locais e cobertas também com as palhas do buriti.

Lá tinha muito buritizal. O pessoal tirava palha de lá, carreava e usava para cobrir as casas. Naquele tempo não tinha telha. As casas aqui eram tudo coberta de palha de buriti.

(Seu Vitro, ao falar de Buriti Grosso, uma das principais veredas da região)

Dona Virgínia Quintal dos Santos em sua casa na comunidade São Martinho, em Januária – MG. Foto de Vitória Santos

Por sua vez, o uso das fibras vegetais não se limita somente ao uso em coberturas de casas. Com o olho do buriti, folhas centrais mais macias, pois ainda estão em processo de amadurecimento, são utilizadas para fabricação de esteiras, utilizadas tanto para trabalho quanto para descanso. Outro uso corrente entre algumas famílias é a fabricação de cestos para usos domésticos e para extração de frutos do Cerrado. Para as cestarias, uma série de palmeiras da região podem ser utilizadas, como o próprio buriti, também o babaçu ou mesmo o bambu. Com a retirada de filetes dos caules, esses são trançados e possibilitam a construção de cestos de variados tamanhos e com alta resistência, podendo durar anos mesmo quando utilizados em serviços pesados.

O modo de vida veredeiro compreende fortes elementos religiosos. Entre as práticas de maior destaque observa-se os ternos de Folia de Reis que congregam pessoas de diferentes comunidades e possuem organização própria, se diferenciando pelo tronco familiar a que pertencem e pela melodia de cada toada (música). Uma mesma folia toca para diferentes tipos de santos a depender do tipo de promessa feita pelo fiel ou época do ano. Entre os santos mais comuns destacam-se São José, Santa Luzia, Nossa Senhora Aparecida e, principalmente, os Santos Reis. Para esses últimos, as folias iniciam seu giro entre os dias 24 e 25 de dezembro, se recolhem e voltam a sair no dia 29 ou 30, estendendo seu giro até o dia quatro de janeiro. No dia cinco do mesmo mês, os foliões se recolhem novamente e no dia seis, dia de Santos Reis, terminam as visitas às casas de quem fez alguma promessa e na última visita retornam à casa do imperador para o fechamento dos trabalhos, o arremate. Trata-se de uma grande festa que reúne grande quantidade de pessoas. Cada grupo possui sua festa separada e os vínculos dos foliões perpassam relações de parentesco, compadrio e, claro, são regidas pelas promessas dos fiéis.

Outra prática de extrema importância entre as famílias veredeiras é o São Gonçalo ou a dança de São Gonçalo. Uma dança coreografada, organizada a partir de duas filas de homens e mulheres vestidos de branco e portando arcos decorados, que evoluem a coreografia de acordo com as ordens daquele que coordena o grupo.

Geralmente o São Gonçalo ocorre mediante o cumprimento de alguma promessa feita por algum membro da família, tendo sua graça alcançada ou não. Nesse sentido, o São Gonçalo de promessa é parte importante do conjunto de práticas religiosas que estruturam o universo simbólico das comunidades veredeiras. A seriedade do cumprimento de uma promessa é tamanha que, mesmo que aquele que realizou a promessa não tenha conseguido cumprí-la em vida, toda a família contrai aquela dívida com o santo, sendo obrigados a realizá-la posteriormente.

Este complexo sistema de uso comum das águas e terras dos variados ambientes que compõem o território veredeiro denota o valor prático, econômico e simbólico deste mesmo território, colorindo as múltiplas faces da identidade veredeira. Sua prática tem se mostrado não só resiliente, mesmo frente à destruição da vegetação nativa desde as políticas de modernização agrícola e, mais recentemente, pelo agravamento das secas decorrentes das mudanças climáticas, mas também atua como parte responsável pela conservação dos recursos hídricos e vegetação nativa ainda existentes.

A luta pelas águas e pelas veredas

II Encontro dos Veredeiros, em 2019. Foto por Valdir Dia

Com base em levantamentos genealógicos e documentos de divisões de terras do início do século XX, é possível afirmar que as famílias veredeiras mais antigas habitam o território desde pelo menos 1850. Viajantes e naturalistas do século XIX já destacavam esses grupos sociais e sua relação com as grandes áreas alagadas dos chapadões sanfranciscanos. Entre os veredeiros, as águas não somente são fundamentais para as práticas vinculadas à terra, como também nomeiam cada comunidade, pois cada espaço habitado é identificado de acordo com sua posição em relação ao leito de água mais próximo. É assim com as comunidades de Cabeceira do Tamboril ou Barra do Tamboril, localizadas respectivamente na cabeceira e na barra do córrego Tamboril.

A partir da realização da cartografia social veredeira, foi possível identificar um total de 132 cursos d’água que compõem uma complexa rede hídrica que interliga tanto as águas superficiais, das veredas, córregos, ribeirões e rios, quanto das águas subterrâneas que alimentam os lençóis freáticos da região, aquilo que muitos chamam de rios subterrâneos. Grande parte dessas águas tem como principais vertedouros imensas áreas alagadas, cada uma delas chamadas de “vereda mãe”, como a vereda do Pindaibal, a vereda Buriti Grosso, a vereda da Jabuticaba. Tratam-se de grandes áreas que detêm papel fundamental no equilíbrio hídrico de todos os demais rios, ribeirões e córregos da região. As dinâmicas hídricas possuem papel tão central entre os veredeiros que podemos considerar seu ambiente vivido como um “hidroterritório”, ou seja, um território no qual as águas formam os espaços habitados e influem diretamente na relação entre seus viventes e o ambiente construído.

Santino refletido em nascente de água em Água Doce, Bonito de Minas – MG Foto de Luciano Dayrell

Tudo isso, no entanto, está em risco. A partir da década de 1970, o modo de vida veredeiro e toda a dinâmica de seu território foram atravessados por empresas dos setores agrossilvipastoris que, a partir de incentivos fiscais, financeiros e fundiários, iniciaram uma frente de exploração jamais vista na história da região. Trata-se de um conjunto de projetos de caráter desenvolvimentistas implementados pelo Regime Militar a partir dos pressupostos da Revolução Verde que converteu o Cerrado em laboratório para o monocultivo de espécies híbridas em escala industrial. Sustentados pelas institucionalidades dos governos federal e estadual na regularização fundiária e em projetos de colonização e de incorporação das áreas de chapadas e de várzeas pela agricultura moderna, observou-se uma movimentação que convergiu para uma expropriação em larga escala das terras onde viviam centenas de comunidades tradicionais. Em conformidade com as resoluções e leis aprovadas à época, esses projetos atingiram a quantia de 1.118.000 (um milhão cento e dezoito mil) hectares de terras devolutas, que foram cedidas nas regiões do norte de Minas Gerais e Jequitinhonha às empresas para exploração com contratos de arrendamentos provisórios que podiam variar de 20 a 30 anos. Se juntarmos as terras cedidas pelo Estado com as áreas adquiridas de forma autoritária – como grilagens – por muitas dessas empresas, podemos chegar a aproximadamente 2.000.000 (dois milhões) de hectares.

Durante a década de 1980 e 1990 assistimos à desforra das chapadas e veredas da região. As chapadas, historicamente utilizadas como áreas de uso comum entre diversos povos tradicionais, foram privatizadas para se tornarem eucaliptais; brejos e veredas foram drenados para receberem o cultivo irrigado; matas secas foram derrubadas para dar lugar a pastagens; a vegetação nativa foi convertida em carvão para abastecer os fornos de siderúrgicas da região metalúrgica mineira. Mas, devido à fragilidade dos ambientes locais, essa exploração durou menos de três décadas. As chapadas e veredas, com seus solos arenosos e profundos, não suportaram o manejo intensivo; estas secaram, naquelas morreram eucaliptais e até mesmo as pastagens cultivadas não progrediram como se esperava.

Santino mostra vereda seca em Água Doce, Bonito de Minas – MG Foto de Varley dos Santos Ferreira

Como consequência das destruições das veredas ao longo da década de 1980 e 1990, iniciada com a chegada de empresas que implementaram manejos desastrosos a ambientes extremamente sensíveis, nas últimas duas décadas, as comunidades veredeiras vêm assistindo aos efeitos não planejados desse avanço de um capitalismo feroz. Para as comunidades veredeiras, o progresso trazido por aqueles que em nada conheciam seus ambientes culminou na morte e destruição dos corpos físicos e das águas, pois quase todo o complexo hídrico que compõem seus ambientes se encontram comprometidos. Nas comunidades localizadas entre Januária, Bonito de Minas e Chapada Gaúcha, foi identificado a extinção de mais de uma centena de córregos, ribeirões e veredas, sendo que aqueles que ainda resistem têm suas águas drasticamente afetadas, chegando a parar de correr em períodos de estiagem. Estima-se que somente as ações das empresas Plantar Ltda e Metalur Ltda, essa última hoje incorporada ao Grupo RIMA Industrial S/A, impactaram mais de 200.000 (duzentos mil) hectares.

Como consequência do avanço de um progresso colonial e devastador, dezenas de comunidades veredeiras foram encurraladas em pequenas faixas de veredas, matas e tabuleiros, não mais podendo utilizar as amplas áreas de chapadas e terras de cultura que foram privatizadas. No entanto, junto do avanço dos projetos desenvolvimentistas, outra ameaça pairou sobre os territórios tradicionalmente ocupados, as agências ambientais estadual e federal, com propostas de criação de parques, sem nenhum diálogo com qualquer comunidade. Nesse contexto, muitas famílias foram expulsas de forma compulsória de suas terras, rompendo com os vínculos historicamente construídos com as veredas.

Em resposta ao quadro de profunda degradação vivido em seu território, várias comunidades veredeiras, em diálogo com o Movimento Geraizeiro e a Articulação Rosalino Gomes, iniciaram amplo processo de mobilização para a retomada da área da Fazenda Alegre/Angicos, antes de uso comum por parte das comunidades da região, que, desde a década de 1980, encontra-se sob domínio da empresa PLANTAR S/A.

A empresa, desde 2009, negocia um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) – Inquérito Civil nº 0352.08.000015-6 – junto ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e o Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG), referente à multa por passivos ambientais na área da Fazenda Alegre/Angicos. A proposta inicial era a criação de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) de cinco mil hectares ou um Parque Estadual de aproximadamente oito mil hectares. Durante os primeiros anos de negociação, as comunidades veredeiras foram excluídas dos espaços de diálogo, em um claro ato de racismo institucional.

As referidas negociações se arrastaram de 2005, ano da denúncia, até meados de 2014, quando MPMG, PLANTAR S/A e IEF-MG triangulavam como principais agentes do acordo. Todavia, na madrugada de 29 de setembro de 2014, sabendo da morosidade do trâmite legal, 130 famílias das comunidades de Barra do Pindaibal, Poções, Brejinho, Capoeirão, Barra do Tamboril, Cabeceira de Mocambinho e Capivara, montaram o Acampamento Geraizeiro do Alegre. Dava-se início à retomada do território tradicional das “comunidades dos gerais e das veredas”, expropriado durante a década de 1980 pelas empresas do setor siderúrgico, entre elas a PLANTAR S/A. Assim, apoiadas pela Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais e pelo Centro de Agricultura Alternativo (CAA), as referidas comunidades, que mais tarde passaram a se denominar comunidades veredeiras do norte de Minas, iniciaram seu engajamento, somando-se ao debate legal em torno da Fazenda Alegre. Desse modo, podemos considerar a retomada da Fazenda Alegre como a gênese do Movimento Veredeiro: guardiões das águas.

O acampamento se estendeu até novembro de 2014, quando lideranças negociaram com o MPMG a desocupação da área mediante constituição de mesa de negociação composta por representantes da empresa PLANTAR S/A, representantes do Movimento Geraizeiro e dos seguintes órgãos: Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais (Cimos-MPMG), Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Subsecretaria de Agricultura Familiar e Regularização Fundiária de Minas Gerais, Instituto Estadual de Florestas-MG, Cáritas Diocesana de Januária, Comissão Pastoral da Terra, Centro de Agricultura Alternativa e Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (NIISA-UNIMONTES).

Desde então, as comunidades veredeiras, a partir de um esforço de ressignificação dos espaços tradicionais deflorados pelos projetos agroindustriais, reivindicam a área da retomada como Território Tradicional Veredeiro Berço das Águas, área historicamente ocupada por centenas de famílias. Trata-se de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável dividida em duas áreas. A primeira, localizada nas porções das antigas fazendas Alegre e Angicos, no distrito de Pandeiros, apresenta uma área de 11.657 ha. Na segunda área, localizada na porção do Buriti Grosso, distrito de São Joaquim, encontram-se um total de 12.706 ha. Estão inseridas entre as sub-bacias hidrográficas do Rio Pardo e do Rio Pandeiros, situando-se à margem esquerda do rio Pardo e à margem direita do Rio Pandeiros.

Mesmo com o avanço dos debates e a clara necessidade de regularização do Território Tradicional Veredeiro Berço das Águas, até a presente data, nada ocorreu. Um dos maiores entraves se dá pelo posicionamento conservador, de caráter preservacionista, de dirigentes do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais, que são resistentes às propostas de RDS frente à possibilidade de expansão do Parque Serra das Araras como Unidade de Conservação de Proteção Integral (UCPI).

Soma-se a esse contexto a chegada da multinacional Brasilagro – Companhia Brasileira de Propriedades Agrícolas, ao território das comunidades veredeiras Veredinha II, Japão e Croá, município de Bonito de Minas. Trata-se de uma empresa que atua no mercado do agronegócio mundial e que detém controle de quase um milhão de hectares na América Latina. O empreendimento objetiva expandir a atuação da empresa e para isso irá destruir mais de dez mil hectares de cerrados e veredas, impactando diretamente não só as famílias veredeiras, mas todas as espécies que dependem daquele ambiente para sobrevivência.

Veredas vivas e Cerrado em pé!

Mas os veredeiros permanecem lutando pela preservação das veredas e de seu modo de vida. Os desafios são grandes, atravessados pelos poderes econômicos e políticos da região, mas não é uma luta solitária. Se organizando através do Movimento Veredeiro e da Associação Central das Comunidades Veredeiras (ACEVER) e se associando a movimentos coletivos como a Articulação Rosalino Gomes e o Tribunal Permanente dos Povos, os veredeiros encontram companhias que alimentam suas forças para continuar. São muitas as riquezas e belezas que estão em jogo nesta disputa. Trata-se de toda uma cultura intrinsecamente ligada com o meio ambiente. Uma cultura viva, sempre em transformação, mas que é pautada pela relação com as veredas, com os territórios hoje ameaçados. Uma história ancestral, para sempre em construção, que forma e reforma o que foi e o que será o mundo veredeiro.

O que falam os veredeiros

Barulho: briga, confusão.

Bater: roçar

Bestando: ficar à toa.

Cultura: plantações.

Emojar: quando a vaca prenha aproxima-se do período de parir a cria.

Esgotamento: drenagem de pequenas áreas da vereda para realização de roças familiares.

Giro: percurso ritual realizado pelos foliões quando iniciado o ciclo de visitas às casas dos fiéis.

Manga: pastos plantados, podendo ser por meio de sementes transgênicas ou de sementes crioulas.

Olho d’água: nascente d’água.

Solta: criação de gado solto nas imensas áreas de chapada. Ocorre durante o período chuvoso.

Terra de ausente:

Terra de cultura: áreas de mata ou manchas encontradas em chapadas com alta concentração de matéria orgânica sendo propícia para o cultivo.

Pantâme: vereda de grandes proporções, muitas vezes, tratadas como “vereda mãe”.

Sistematização de várzea: preparo das áreas de várzea com drenagem e nivelamento do solo objetivando o plantio.

Pesquisadores

Breno Trindade da Silva 

Bruno Neris Basto

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